sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Esquecido

Os pequenos olhos negros de Hugo percorriam com avidez, a imponente fachada da
Biblioteca Nacional. Plantado num ponto de ônibus, segurando a mala e um guarda-chuva,
observava as mansardas carregadas de pátina e o ecletismo das formas do edifício. Pensou nos
livros raros e antigos, nas revistas disponíveis para leitura e na oportunidade obtida para
desenvolver sua pesquisa. Há muito, aguardava a autorização da Biblioteca, mas finalmente
conseguira. Aproveitaria o recesso das aulas da faculdade, para completar sua dissertação sobre
a influência francesa na arquitetura do século XIX.
Estava cansado, devido à longa viagem desde o interior de São Paulo. Seu ônibus foi
obrigado a socorrer outro, enguiçado e, o que estava sendo uma viagem folgada, tornou-se um
aperto com a entrada dos novos passageiros. Foi premiado com um homem gordo e bafejador,
que passou o restante da viagem mexendo em papéis, que tirava e guardava na velha pasta
surrada. Espremido contra a janela, só pensava em chegar.
Na rodoviária da Praça Mauá pegou as direções certas e seguiu de lotação pela Avenida
Rio Branco. Desceu no último ponto da Cinelândia. Que nome lindo, pensou, terra dos
cinemas...Com seu olhar atento, identificou todas as edificações: Theatro Municipal de um lado,
Museu de Belas Artes do outro e a gloriosa Biblioteca Nacional...Era a primeira vez, que vinha
ao Rio de Janeiro, aliás, era a primeira vez que saía de Sorocaba. Nem mesmo a capital paulista
conhecia. Não podia contar com as vezes que fora com sua mãe, ainda pequeno.
Seu plano de chegar na sexta-feira, lhe daria a oportunidade de conhecer as belezas
naturais da cidade. Queria visitar o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar. Também não faltaria
um banho de mar em Copacabana, com todo cuidado, porque não sabia nadar. Voltaria na outra
quarta-feira.
Um esbarrão de um apressado ao tomar um carro de praça, fez Hugo voltar à realidade.
Atravessou a avenida e entrou pela primeira vez no santuário das letras. A imponência do
saguão chegou a comovê-lo pelos detalhes artísticos. Afinal, era um esplendor que correspondia
com a importância da Capital do Brasil. Avistou um balcão de madeira e tampo de granito, com
uma funcionária impecável. Dirigiu-se para ela:
-- Boa tarde. Sou aluno da Faculdade de Arquitetura de Sorocaba. Recebi a autorização
para pesquisa...meu nome é Hugo Mor...Antes de concluir, a funcionária antecipou-se:
-- Já estou com sua ficha na mão. Foi assinada hoje pela manhã, pelo chefe do setor de
coleções, mas sua autorização inicia na segunda-feira e não hoje.
-- Entendi. Cheguei a pouco de viagem e vim dar uma passadinha e aproveitar o fim de
tarde, disse Hugo.
-- Então, aproveite para conhecer o salão de leitura. Quanto aos seus livros, somente
na segunda-feira, tá bem?
Assim, Hugo obedeceu. Deixou seus pertences no outro balcão e seguiu ao imenso salão
de leitura. Aproximou-se de uma mesa comprida com diversos jornais do dia. Escolheu o
Correio da Manhã e sentou-se para ler. Poucos minutos depois, um frêmito tomou o seu corpo, o
farfalhar do jornal despertou outros leitores ao redor, que observavam o espanto do rapaz.
A seção de obituários continha a seguinte nota: Falecimento do Sr Armando Mori –
enterro hoje às 17 horas no Cemitério São João Batista. Caramba, será que é aquele tio do
meu pai, meio esquisitão, que mora aqui no Rio, pensou.
Já passava das quatro e meia da tarde, quando de supetão, Hugo pegou suas coisas e
ganhou a avenida. Carro de praça, não! Fora alertado dos motoristas portugueses que rodavam
sempre um pouco mais, quando o passageiro era turista. Foi de bonde.
Eram vinte minutos passados das cinco, quando finalmente entrou na capela. Havia
poucas pessoas e somente uma coroa de flores. Ao perceberem sua chegada, todos se voltaram
para o intruso. Hugo chegou a rodar os calcanhares, para cair fora dali, quando inesperadamente,
uma mão pousa sobre seu ombro imobilizando-o. Assustado, virou-se para a pessoa e, eis quem
estava à sua frente: o gordo bafejador!
Minhas condolências, disse, pegando a sua mão, que desaparecera dentro da dele. Ao
livrar-se do paquiderme, os outros já o haviam rodeado e agora o cumprimentavam, prestando
seus pêsames. Hugo atordoado, ainda não sabia o que fazer, explicar o engano ou fugir do
embaraço, embora havia algo que necessitava um esclarecimento. Podia ser seu tio de segundo
grau, sabe-se lá qual era mesmo esse grau. Após os cumprimentos, o corpo foi logo despachado
para a sepultura e ainda sem o momento certo de fazer suas perguntas, acompanhou o féretro,
até o lugar de descanso.
Lá, o gordo aproximou-se de novo e antes que Hugo abrisse sua boca o outro disse:
-- Não diga nada, meu jovem. Sinto muito pela sua perda.
Hugo aquietou-se por uns instantes, afinal, até poderia ser seu parente, mas, como eles
poderiam saber?Pensou.
Após o enterro e depois de receber os últimos cumprimentos, Hugo decidiu esclarecer os
fatos, antes que o rolo aumentasse. Aproximou-se do “peso pesado” e disse:
-- Senhor, não sei o que o leva a pensar no meu parentesco com o morto, muito embora
tenhamos o mesmo sobrenome. Eu nem o conhecia, arrematou.
-- Meu jovem, aqui no Rio de Janeiro, pessoas como você são poucas. Ao vê-lo, deduzi
logo: é da família! Além do que, Seu Armando não tinha parentes aqui.
Eis que de repente, Hugo deu um tapa na própria testa:
-- É verdade...isso sempre acontece, esqueci o puxadinho dos meus olhos.


FIM

2 comentários:

Maria de Lourdes disse...

Excelente conto.!!!

Sérgio Araújo disse...

Caro amigo Rébula,

Com certeza temos muitos interesses em comum: a filosofia, a poesia e, agora estou vendo, o concretismo através de Haroldo de Campos. Gosto dos seus textos e também vou te acompanhar aqui, no Correio.

Abraço.